B Fachada - Deus, Pátria e Família



Deus, Pátria e Família" é o título do novo disco de B Fachada. Uma suite de 20 minutos que provoca pelo título, que provoca logo aos primeiros versos: "Portugal está para acabar / É deixar o cabrão morrer". Iconoclastia? Intervenção? Depois da chegada do FMI, depois das eleições, B Fachada fez um retrato de família que é "uma tareia para colocar ao ridículo coisas que não devem ser sagradas"


Considerando a cadência editorial de dois discos por ano de B Fachada, esperávamos que 2011 trouxesse um "disco de verão", sucessor do "Há Festa na Moradia" de 2010. O que nos chegou, porém, não foi propriamente um disco de verão. Ou melhor, é um disco de verão quente.

Suite de vinte minutos, disponibilizada para dowload gratuito no início de Junho - e que pela net ficará (não haverá edição física)-, chamou imediatamente a atenção pelo título. "Deus, Pátria e Família", a trindade doutrinária do Estado Novo. Aquilo que B Fachada cantava em ritmo de ginga lenta ao piano ou entre planares em sintetizador, aquilo que se ouvia ao longo dos vinte minutos, chamou mais atenção ainda. Versos como "Portugal está para acabar / É deixar o cabrão morrer / Sem a pátria para cantar / Sobra um mundo para viver", ou "Eu não sei português / E que se foda Portugal / Eu canto em fachadês / A minha língua maternal", no seu tom violento e neste contexto de um país abatido e revoltado, resgatado por instituições estrangeiras por décadas de incompetência política, valeram-lhe comparações ao "FMI", de José Mário Branco, valeram-lhe o elogio de quem pertence à geração precária que marchou no 22 de Março e que primeiro adoptou o "Parva que sou" dos Deolinda. Valeram-lhe, em sentido contrário, acusações de anti-patriotismo primário ou de apropriação populista de dolorosos símbolos de memória.

Neste momento, a Mbari, editora de B Fachada, deixou de conseguir contabilizar o número de downloads da canção. Nos primeiros dias, os servidores bloquearam perante a avalanche de utilizadores, entretanto outros internautas disponibilizaram novos links e, agora, tornou-se impossível saber exactamente quantos a ouvem.
B Fachada, nascido em meados dos anos 1980, tem na memória a cópia do "FMI" do pai. Lembra-se da capa, da força da música e da voz. Naturalmente, teve-o presente enquanto gravava "Deus Pátria e Família". Mas o "FMI" a José Mário Branco pertence. Totalmente, inteiramente. Irrepetível, logo insuperável.

A provocação de Fachada é uma outra coisa. É um gesto estético integrada num contexto específico, uma provocação para agitar, o retrato de família que B Fachada, que "não canta em português", fez deste país, ano 2011. Com as pontas soltas da ambiguidade que é uma das suas imagens de marca.

É impossível desligar "Deus, Pátria e Família" do contexto actual, com o país a enfrentar uma crise terrível e com as pessoas descrentes, abatidas, revoltadas. O prolongar deste estado de espírito colectivo foi algo a que, como músico, sentiu obrigatório reagir? Ou foi um jorro, palavras que surgiram, irreprimíveis?

Claro que o contexto é indissociável da canção. Mas, como sempre acontece nos meus discos, ele nasceu de várias ideias diferentes que acabaram por se reunir. Quando comecei, tinha a ideia de fazer o disco erótico, ou o de sintetizadores, ou fazer a continuidade do verão de "Há Festa na Moradia" [editado em 2010]. Havia também algo de mais violento e agressivo [que queria explorar]. A certa altura, coloquei-me o desafio de fazer uma canção longa e foi aí que as ideias começaram todas as juntar-se e a sobressair [este "Deus Pátria e Família"].

É óbvio que este regresso do FMI é representativo de um ciclo. O FMI de volta para mandar em nós, e nós a votar em mais uns tipos que também vão mandar. Tipos que deviam ser brilhantes, mas que não são. É precisamente isso que me faz mais confusão, e não tanto a questão dos esquemas e das pequenas corrupções. Para mim, o centro da canção sempre foi "a terra de amadores" ["Em terra de amadores / Basta ter o pau a meio"], este sentir que, de repente, os alicerces do nosso amadorismo estão em vias de ruir em todas as áreas. Na política deviam estar tipos brilhantes a tratar das coisas, mas afinal são só uma cara para aparecer na televisão e um nome para assinar papéis. E isto quando as pessoas nunca tiveram tanta consciência política quanto hoje, quando nunca houve tanta informação, tanta variedade de perspectivas. Independentemente daquilo que nos fazem crer, continuo a achar que a classe política e os políticos só existirão enquanto acreditarmos neles. Quando deixarmos de acreditar, deixarão de existir e serão substituídos por nós. Porque na verdade são nossos empregados, como aliás se viu na Islândia.

Mas se assim é, o que falha?

O que falha? Por um lado falta ambição, falta pensar em grande. Pensar de uma maneira agressiva e tentarmos ser melhores naquilo que fazemos. Ontem o Norberto [Lobo] dizia-me que só consegue trabalhar com pessoas que façam força para a frente. E isso é de facto necessário, tendo também alguma humildade quando olhamos para o que fizemos antes. Nesse sentido, enquanto músico, talvez tenha sorte por viver num tempo em que se vendem tão poucos discos, porque assim é impossível deslumbrar-me.

Esta seria a altura ideal para todos adoptarmos o método Mourinho. O Jorge Cruz diz, e com razão, que o Mourinho é o nosso Muhammad Ali: um desportista que influencia a cultura através do método. Aquele método da arrogância na imagem aliada a uma humildade no trabalho, que depois é super eficaz. O Mourinho sempre pensou em grande desde o início. E sabe aprender. Ora isto não é nada nosso, é muito mais anglo-saxónico que mediterrânico.

Daí, depreendo, um verso como "sem a pátria para cantar, sobra o mundo para viver". No fundo, é como se dissesse que temos que nos esquecer de Portugal, da ideia colectiva de Portugal, para dar passos em frente.

Temos que relativizar o valor das coisas e questionar sempre, não podemos venerar cegamente nada. Por exemplo, o facto de as pessoas acharem que por eu dizer "que se foda Portugal" estou a falar do país de cada um, estou a dizer que não gosto de sopa da pedra. "Mas Portugal tem coisas tão lindas. Temos o Mourinho e a sopa da pedra". Claro que [a canção] não tem nada a ver com isso. A noção de pátria é uma noção abstracta e é fácil uma pessoa esquecer-se disso, porque todos os dias nos tentam convencer do contrário.

Chamar à canção "Deus, Pátria e Família" é obviamente uma provocação. Quase como se dissesse que, apesar de já não vivermos em ditadura, apesar do 25 Abril, há traços que não se apagam.

Isto sou eu a permitir-me dar uma tareia geracional. Sou eu a dizer que 'Deus, Pátria e Família' foi a maneira como vocês foram educados. Vocês, as gerações que é suposto eu destruir. Porque vivemos um hiato e é preciso abrir espaço para que possa surgir qualquer coisa de realmente interessante. Não eu, não as pessoas que abrirão essas portas, mas as que virão a seguir e que poderão trabalhar com um nível de profissionalismo e de honestidade que não terá comparação com o que aconteceu até agora.

O interessante nessa trindade "Deus, Pátria e Família" é que, primeiro, só soa bem nessa ordem. Se for "Família, Deus Pátria", já não é a mesma coisa. Depois, aquilo não foi lema nenhum, não foram valores nenhuns. O nosso ditador era um ditador amador em comparação com os outros. Era mesmo. Até o Hitler roubava arte, criava museus e reunia património. Todos os países do mundo só se deixaram dominar por gajos horríveis, mas com algum brilhantismo. Nós deixámo-nos dominar por um gajo que não conseguiu ser padre, o que é muito significativo. Isso é que é a maior herança do Estado Novo: um ditador que a única coisa que fez foi plantar trigo, algum turismo, alguém que era uma nulidade cultural. Parece que sabia alguma coisa de economia, mas na verdade resolveu o problema das finanças à porrada, nos anos 30. Essas contradições todas juntas reflectem-nos nos 35 anos que passaram [desde o 25 de Abril]. É explícito nos Globos de Ouro, onde toda a gente sobe ao palco e diz "gostava de agradecer à SIC e à Caras", onde ninguém levanta ondas e todos pedem desculpa por ter ganho. No fundo, toda a gente dá o rabo desde o regicídio. Aí não. Aí matámos o rei não por ele ser um mau rei, mas por nós sermos bons republicanos. Fora isso, é tudo "pode ser", "safa", "não está mal"."

Ao longo dos tempos, fomos vendo surgir esse gesto íntimo e iconoclasta em relação ao país, do amargurado "meu remorso de todos nós" de Alexandre O'Neill [em "Portugal"] ao visceral "FMI" de José Mário Branco. Este disco, também é isso?

Bem, na verdade, tudo isto são chavões estéticos que precisam de ser usados. É preciso criar tradição e esse é o papel que tenho tentado agarrar. Os discos que acho que faltam são os que tenho que fazer. Se cada vez que chega um disco anti-americano vindo da América achamos aquilo inteligentíssimo e super charmoso, então é sinal que falta aqui essa tradição. E, no sentido em que me é permitido dizer mais coisas, se alguém pode ter esse papel, sou eu. É-me desculpado: sou novo e trabalho por conta própria, como tal, posso dizer tudo. Se isso pode ser aproveitado, deve ser aproveitado.
Mas para mim também é um jogo, uma brincadeira. Na verdade, o meu trabalho é musical e a letra serve a canção. De tal forma que eu não posso deixar a letra demasiado explícita se não toma-me conta da música.

Mas afinal devemos ou não levar a sério o que nela canta?

Claro que sim. Mas quero que levem a sério o narrador [da canção]. Eu não sou um político, não falo de verdades. O narrador é que fala. Ou seja, ["Deus Pátria e Família"] não é um manifesto. Não sou eu que quero dizer aquilo, na verdade. É a canção. E eu digo o que a canção quer dizer. Tinha versos incríveis que não entraram porque a canção não os queria dizer.

E quem é esse narrador?

Quem é esse narrador? Não sei.

Nas reacções à canção com que nos temos deparado, ela é muitas vezes associada à frustração da geração de precários que primeiro se mobilizou para o 22 de Março. O narrador surgirá daí, é alguém que partilha esse descontentamento?

Acho que não. A mim interessa-me uma visão mais geral. É óbvio que o que está a correr mal no mundo não é a geração à rasca - e está muita coisa a correr mal no mundo. Vivemos numa altura em que se chegou à conclusão que o mundo assim não funciona. E isso não é específico dos trabalhadores precários a recibos verdes em Portugal. Mesmo em Portugal, o problema nunca será esse e, acima de tudo, nunca poderia ser eu a falar disso, eu que sou de facto um trabalhador por conta própria e que trabalho de facto a recibos verdes. A minha função não é populista, é egoísta. Eu bato no público e o público gosta e é assim que as coisas funcionam. E devia haver toda uma contra cultura a funcionar assim. Foi como aprendi do [Alberto] Pimenta e apesar de não o fazer para a eternidade, faço-o como posso, pelos meus meios.

Agitando e provocando, portanto.

É necessário dar umas tareias de vez em quando que sirvam para desvalorizar e colocar ao ridículo coisas que não devem ser sagradas. A conclusão em relação a Deus da minha canção de vinte minutos é a ausência. Deus está ausente da canção e não há endeusamento de nada. Basicamente, a canção põe a pátria no lixo. Depois, a família sou eu e Deus não é nada. É isto. Porque a pátria não são os bairros que eu conheço e os cafés a que gosto de ir. Cada pessoa tem o seu país e o seu dia-a-dia e a sua família. No fundo, cada um tem a sua religião privada.

Ainda que cada uma das pessoas tenha o seu país, como diz, neste que existe há mais de oito séculos haverá certamente características que as definem enquanto comunidade.

Claro. E a língua é a primeira. Mas é, ao mesmo tempo, o maior sinal de fragilidade cultural. Numa jantarada em Espanha com quinze espanhóis de quinze sítios diferentes, ouvem-se 15 línguas. Ninguém abdica dos seus regionalismos ou da sua pronúncia. Usam um vocabulário diferente para falar das mesmas coisas e todos se entendem. Em Portugal acontece exactamente o oposto. Diluímo-nos linguisticamente com uma facilidade quase pornográfica. Vamos ao Porto e temos medo de pedir uma imperial. Em Lisboa toda a gente fala à lisboeta, porque quem não fala à lisboeta é gozado pelos outros. É uma característica do nosso português fechado e de poucas palavras, especialista em criar entropia para evitar que mude alguma coisa. Mas mudamos o nome de uma avenida para Avenida da Liberdade e a Ponte Salazar passa a ser Ponte 25 de Abril. Gostamos muito de mudar o nome às coisas.

Para que tudo fique na mesma?

Sim. Ainda agora esperámos que aparecesse uma geração de políticos que fosse um "downgrade" da geração anterior para finalmente decidirmos "agora é que é altura de pôr os mais novos a mandar nisto". Que são aquela geração que não teve aulas no 25 de Abril, que esteve dez anos nas associações de estudantes e que, quando não tinha cursos, comprou-os. Esperámos que esses chegassem para decidir que devíamos dar lugar aos mais novos. Mas, ainda assim, temos um Presidente [da República] que já mandou nisto antes. No fundo, até é engraçado, se pensar que, para mim, a grande questão da canção ["Deus, Pátria e Família"] é a cultura. Interessa-me a língua, interessa-me o facto de deixar bem claro que não faço canções em português. Não estou interessado em ser absorvido pela história da cultura portuguesa por cantar em português. A base de toda a ideia é essa, aliada ao agitar, ao provocar reacções que só surgem porque isto está empenado. Se não estivesse, isto era só mais um disco. Nunca pensei que, apesar da ligação ao Estado Novo, o título causasse problemas. Tem causado porque há gente que acha que é o equivalente a pôr uma suástica na capa. Se calhar até é, não digo que não. Mas esse não é o meu trauma. [O título] Pisa outra vez na ferida do país que cresceu com aquilo. E que, na verdade, não é o meu.

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