Haiti


"Observando a proliferação de imagens do Haiti, percebemos a lógica perversa da nossa “estética de auto-estrada”: quando dois carros chocam, imediatamente se formam filas imensas, não porque alguém vá fazer alguma coisa, mas porque o acidente envolve alguma atracção. Claro que ninguém fala disso: vivemos num quotidiano de compulsiva “purificação”, onde até os comentadores de futebol acreditam que há golos “justos” e “injustos”. O certo é que a atracção pela devastação, cujo limite impensável é a contemplação vitoriosa da morte, faz parte do bilhete de identidade humano. Nada que o avô Freud não nos tenha ensinado no princípio do outro século.

O certo é que Freud não programa as televisões. E há uma frase feita para resumir este status quo: “Tudo é espectáculo!”. Mas a frase é redutora, já que não há cumplicidade possível entre o sinistro espectáculo do Big Brother e seus derivados e uma ópera de Verdi ou um musical da Metro Goldwyn Mayer. As televisões agem como se a realidade fosse automaticamente espectacular. Daí que não faça sentido discutir a informação televisiva avaliando se mostra “muito” ou “pouco”. Não é a quantidade das imagens que está em causa, mas o modo de as olhar, integrar e difundir. Na certeza de que todos queremos ver e saber mais sobre o Haiti.

As imagens repetidas, tendencialmente redundantes, pouco ou nada têm a ver com a paixão do conhecimento. Decorrem do mesmo infantilismo jornalístico do repórter que, à entrada de um estádio, faz um directo sobre as claques e proclama: “Ainda não há confrontos!” Ou seja: esperem um pouco, que isto ainda vai dar sangue. Jornalismo da catástrofe, jornalismo para a catástrofe."

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